Cozinhando com Sangue

Inspirada na onda vampiresca que assola cinemas, TVs e livrarias, resolvi pesquisar sobre pratos feitos com sangue. Não que vampiros comam algo de forma não metafórica, mas enfim... Vamos começar pelas fontes de inspiração.

Vampiros e Literatura

Bram Stoker foi um gênio criativo. Muitos depois dele tentaram, mas a verdade é que seu Conde Drácula já tinha todas as características que foram replicadas à exaustão por quem se aventurou a contar as histórias dos seres imortais bebedores de sangue.


Mas isso foi no século XIX. Os vampiros da literatura moderna de Stephenie Meyer, criadora da série Crepúsculo, dirigem carros velozes e frequentam o colégio.

Verdade seja dita: Anne Rice, antes de abandonar New Orleans e o ateísmo, presenteou o mundo com vampiros complexos, lindos e sedutores como todo vampiro, mas cheios de camadas e nuances. Impossível não se apaixonar por Lestat, Louis e Claudia, a vampira-criança. E veja só, Rice publicou “Entrevista com o Vampiro” em 1976, bem antes da atual onda sanguínea. Vale lembrar que este livro foi traduzido em terras brasilis pela über célebre, Clarice Lispector.

Mas os vampiros de Rice têm defeitos, fraquezas e imundícies. São sujos demais para entrar na casa e nos corações das adolescentes fanáticas por High School Music e Hanna Montana. E é aqui que entra o golpe de mestre de Meyer.

Stephenie Meyer nasceu em 1973, na cidade de Hartford, Connecticut. É mórmon, não bebe, não fuma e possivelmente só faz sexo para procriação. Seus vampiros são loiros, limpos, bem vestidos, dotados de beleza apolínea e, surpresa!, não bebem sangue humano.

Os vampiros de Meyer são tão perfeitos que, contradizendo mais de dois séculos de vampirologia, não podem se expor ao Sol por um motivo ímpar: sua pele brilha e faísca como se fosse coberta por pequenos brilhantes!


Ok, preciso confessar. Li três volumes da série e o quarto já me aguarda na estante, esperando uma brecha entre os bons livros que tenho consumido. Não vou dizer que odiei porque seria mentira ou claro sinal de masoquismo. Mas resumo minha opinião dizendo que torço pelo lobisomem...

E de que se alimentam os vampiros além de sangue humano? Os de Anne Rice comem ratos, pombos e até poodles. Já o Edward Cullen de Meyer prefere ursos e leões da montanha. Muito fino, o moço.

A insossa heroína de “Crepúsculo” também não demonstra muito apetite. Em mais de duas mil páginas lidas, seu cardápio variou entre cereais matinais e pizza. Por outro lado, a virgem Bella Swan tem muita fome de sexo. Mas creio que Edward só cederá aos seus impulsos no último livro, depois que os dois pertencerem à mesma espécie.

Vampiros e Cinema


Nosferatu, o Drácula de Coppola e Entrevista com o Vampiro. Na minha modesta avaliação estes são os filmes que formam a trilogia maldita do sangue. Mas quando se fala de sanguessugas imortais, é impossível não lembrar de Christopher Lee e sua imagem icônica, tão imortal quanto o personagem que interpreta.


Atualmente o mundo conta os dias para o lançamento de “Lua Nova”, continuação de “Crepúsculo”, onde o show é do lobisomem.


Ah! Acabo de me lembrar de outro clássico do gênero, desta vez enveredando pela comédia: “Dança dos Vampiros”. Escrito, dirigido e estrelado pelo diabólico Roman Polanski, que tem ligações com as trevas desde “Bebê de Rosemary”. Polanski é persona non grata na América e por isso não pode receber pessoalmente nenhum dos três prêmios Oscar arrebanhado pela bela obra “O Pianista”. Numa analogia barata, de mesa de bar mesmo, acho que até dá pra engolir a teoria de que nazistas não passam de vampiros fardados, não dá?

Vampiros e TV

Esqueça Buffy pelamordedeus!


A série que me salvou da síndrome de abstinência na entressafra de Lost chama-se True Blood e já está quase no final da segunda temporada. Aqui no Brasil é exibida pelo canal HBO.

Só os créditos de abertura já valem à pena. Nunca vi nada tão bom, principalmente se levarmos em conta que isso não é um filme e sim um seriado com temporadas de apenas 12 capítulos. Junto com a música de Jace Everett, que canta “I wanna do bad things with you...” e gruda na alma, a colagem de cenas sintetizam lindamente o teor da série.



A cereja do bolo é desenvolver a trama em Bon Temps, na Louisiana, estado americano que, no meu ponto de vista, é o verdadeiro berço dos vampiros. Que Romênia, que nada! A Louisiana exala um calor úmido e místico, esbanja sensualidade e lascívia. E True Blood é tudo isso: sexo, drogas e música de primeira (não só rock).

O sexo rola de todas as formas e muito. Principalmente na segunda temporada. Sexo de vampiro com vampiro, vampiro com humano, transmorfo com humano, humano com humano, e por aí vai.

A droga mais cobiçada pra fazer a cabeça dos malucos é a “V”. V é sangue de vampiro. Algumas gotas e você amplifica os cinco sentidos e ainda desenvolve mais alguns. Mas também tem muita bebida rolando solta. Os vampiros, por exemplo, enchem a cara de (ha!) Tru Blood, sangue sintético pra enganar a fome de sangue real. Tem negativo, positivo, tipo O, tipo AB... E a HBO, que não é boba nem nada, já está aceitando encomendas do refri de laranja sanguínea, chamado, veja só, Tru Blood (encomendas aqui).


E comida? Tem?

Tem sim. Mais do que a média dos filmes, livros e séries do gênero. Afinal temos uma típica vovó sulista que sempre tem uma torta assando no forno.
Na segunda temporada, uma personagem que passa tempo considerável no ambiente da cozinha (mas não cozinhando!), cercada por frutas dignas da melhor banca do Mercadão, prepara uma iguaria para seus pupilos: pot-pie de coração. Humano.

Humanos e a Ingestão de Sangue

Não precisa ser antropólogo pra imaginar que nossos ancestrais lambuzavam-se no sangue de suas caças. Além de toda a simbologia mística que o ato carrega (como apropriar-se da força do touro ao beber seu sangue), como alimento, o sangue é altamente nutritivo. A prática de utilizar todas as partes de um animal morto para comer existe desde os tempos mais remotos, e tradicionalmente inclui sangue, que é altamente nutritivo, mas também altamente perecível. O sangue saudável contém muitas proteínas e minerais (destaque para o Ferro) e é uma fonte muito rica em vitamina D se o animal for selvagem ou de pastagem.

Os Maasai, seminômades do Quênia e norte da Tanzânia, têm atividade pecuária. Enquanto eles raramente sacrifiquem seu gado bovino (que são uma unidade monetária muito valiosa, eles criam ovelhas e cabras para corte), eles consomem seu leite e sangue, através de uma cuidadosa sangria que não põe em risco a saúde do animal. Marco Polo descreveu como os Mongóis, em campanhas militares distantes, não carregavam provisões, mas cada guerreiro cavalgava com uma fileira de 18 cavalos reserva. Diariamente cada guerreiro consumia cerca de uma xícara do sangue de um desses animais, sabendo que este animal só poderia ser usado novamente depois de 10 dias. A história nos conta sobre o sucesso devastador nas batalhas pelo qual os mongóis tornaram-se temidos e famosos.

Com o passar do tempo fomos adquirindo certa repugnância pela ingestão de sangue, principalmente na cultura ocidental das Américas. Mas atire o primeiro leucócito quem nunca levou o dedo à boca ao furá-lo acidentalmente e sentiu o sabor ferruginoso e levemente adocicado, mas que de forma alguma pode ser descrito como horrível ou intragável. O fato é que além de ser um produto de difícil acesso nas grandes cidades, o sangue animal pode ser perigoso se não forem observados os devidos cuidados higiênicos. Desde a criação do animal até seu abate e armazenamento. Portanto, só faça as receitas sugeridas se tiver um fornecedor de confiança.


Nos tempos modernos o uso de sangue como alimento não é comum, mas seria vergonhoso que algumas iguarias que já foram muito populares desapareçam dos cânones culinários.

Aqui no Brasil temos alguns poucos pratos feitos com sangue. Entre os mais conhecidos estão o Frango ao Molho Pardo, a Galinha de Cabidela, Buchada de Bode, Panelada de Porco e o Sarapatel. Europeus têm muito mais tradição no assunto. A Morcilla espanhola e o Boudin francês são uma suave introdução ao mundo rubro das hemácias.

Amigo querido e um dos melhores churrasqueiros que conheço, Dr. Ricardo Toledo tem sempre uma morcilla na brasa toda vez que convida pra churrasquear. Agora me ocorre: talvez, ser médico e ter mais familiaridades com as coisas da natureza animal, seja um agente facilitador na hora de botar goela abaixo as partes mais escusas de um bicho.

Veja bem, não quero aqui fazer apologia ao consumo de sangue animal. Ainda mais agora que ando na luta pra me tornar vegetariana. Devo dizer que agüentei bravamente por 15 dias mas sucumbi diante de um polpetone do Jardim di Napoli. Minha única intenção é diminuir um pouco o preconceito que se tem com algumas comidas.

Pense bem, na China animais são comidos ainda vivos, esperneando. E perto disso o que são algumas gotinhas de sangue, não é?

O Sangue na Cozinha

A especialidade polonesa chamada Czarnina (derivado de czarny, polonês para preto) é uma sopa de sangue de pato. A sopa já interpretou um interessante papel cultural no caso da carreira de conquistador de um jovem rapaz. Se a sua pretendente decidisse por rejeitá-lo, os pais da moça entregavam o veredicto para o desafortunado rapaz servindo a ele um prato de czarnina, o que seria, supostamente, um prêmio de consolação.

Cidades com bairros poloneses grandes o suficiente para produzirem restaurantes com a autêntica cozinha tradicional podem ser bons lugares para experimentar a sopa. Áurea, cidade do Rio Grande do Sul, promove, todos os anos no primeiro sábado de junho, o Festival Nacional da Czarnina (clique para saber mais)

Receitas originais para a preparação caseira incluem um pato vivo (às vezes um ganso), o acompanhamento de dumplings de batata ou massa a base de ovos e presume maestria nas técnicas básicas de destrinchar aves e fazer molhos.


Sopas de sangue aparecem na culinária de várias outras culturas. Tiêt cahn é feita com sangue cru de pato, ganso e às vezes porco, típica dos camponeses do norte do Vietnam, guarnecida com gengibre, ervas verdes e amendoim. É geralmente servida como um café da manhã rico em proteína ou é recomendada como preventivo contra ressaca se você pretende encher a cara. De qualquer forma, fará você forte, dizem os que a preparam e consomem. As autoridades locais tentam transformar a iguaria em algo ilegal, devido ao medo provocado pela gripe aviária.

Svartsoppa (sopa negra em sueco) é uma especialidade regional de Skåne, no extremo sul da Suécia, e era tradicionalmente consumida na festa que comemora o dia de São Martin, 10 de novembro. A sopa do festival – sangue de ganso levemente batido, temperado com canela, cravo e gengibre – é muito mais rara atualmente já que a maioria das pessoas não cria mais aves em casa.

Salsichas de sangue de todos os tipos são encontradas em diversas cozinhas de muitas nações. Chamadas de Black pudding no Reino Unido, Blutwurst na Alemanha, Morcilla na Espanha, Boudin Noir na França e Xué Doufoú (tofu de sangue) na China; salsichas de sangue são todas, na essência, preparadas com sangue de porco, carneiro, bode ou boi, juntamente com temperos, banha ou outro tipo de gordura e frequentemente algum grão como centeio, aveia, trigo integral ou arroz.

Elizabeth David em seu clássico de 1960, French Provincial Cooking, nota que o boudin noir de Nancy em Lorraine, é renomado. A seguir suas instruções de como preparar e servir boudins comprados em casa.

“O boudin francês, geralmente bastante carregado no sabor de cebola e muito menos insípido que o tipo comumente encontrado na Inglaterra, é cortado em pedaços de cerca 15 cm no sentido do comprimento, pincelados com azeite de oliva ou gordura de porco e grelhado por cerca de 5 min. de cada lado. Sirva sobre uma cama de maçãs sem pele, descaroçadas e cortadas, levemente fritas em banha.”

A Amazon vende um livro (não resisti e acabei de encomendar) chamado “The Dracula Cookbook of Blood” repleto de receitas do mundo todo. Assim que chegar dou um update aqui.

Receitas

Czarnina

Rendimento: 6 a 8 porções


1 pato vivo de aprox. 3 kg (para resultar em 2 xícaras de sangue)
1/2 xic. de vinagre
1 talo de salsão picado
vários ramos de salsinha
1 cebola pequena, picada
1 bouquet garni
2 xic. de frutas secas (ameixas, cerejas ou passas e maçãs ou peras)
2 col. de sopa de farinha de trigo
1/2 xic. de sour cream
Sal marinho a gosto

Para os dumplings de batata:
2 xic. de batata ralada e escorrida
1 col. de chá de sal
2 ovos ligeiramente batidos
1 1/2 xic. de farinha de trigo
1/2 xic. de farinha de rosca grossa (bread crumbs)

Mate o pato de forma rápida e limpa e corte sua cabeça. Colete o sangue em um recipiente de vidro ou cerâmica. Adicione o vinagre para impedir a coagulação e reserve na geladeira. Enquanto isso limpe e depene o pato, removendo o peito e as coxas, que não serão usados nessa receita, mas podem ser utilizados em outras.

Coloque a carcaça do pato, incluindo o pescoço, o coração, o fígado e a moela, num caldeirão grande. Cubra tudo com água e deixe abrir fervura. Escume o caldo e reduza o fogo para uma leve fervura. Adicione o salsão, a cebola, salsinha e o bouquet garni. Cozinhe lentamente até que a carne do pato esteja totalmente cozida e macia, aproximadamente de duas a três horas. Remova e descarte o bouquet garni. Retire a carcaça do pato e desfie toda a carne. Adicione as frutas secas e deixe cozinhar por mais meia hora.

Misture a farinha de trigo com o sour cream e adicione lentamente à mistura de sangue e vinagre. Também lentamente (ou irá talhar) adicione uma xícara do caldo quente, misture bem e acrescente tudo ao caldeirão com a sopa. Adicione a carne desfiada, sal a gosto e, se necessário, um pouco mais de vinagre. O sabor deverá ter uma “pegada” agridoce.

Muitas receitas sugerem que a sopa seja resfriada e refrigerada de um dia para o outro para que os sabores se desenvolvam plenamente (a doçura das frutas também se tornará mais aparente).

Dumplings de Batata
Misture todos os ingredientes fazendo uma massa consistente. Na hora de servir, despeje colheradas da massa na sopa fervente. Estarão prontos quando subirem à superfície do caldo.

Boudin Noir

Tenha em mãos as tripas já preparadas e prontas para usar.


Refogue 3/4 de xícara de cebola finamente picada em 2 colheres de sopa de banha de porco sem deixar pegar cor.

Pique 500gr de gordura de porco em cubinho pequenos e leve ao fogo para amolecer brevemente. Deixe esfriar um pouco e adicione 1/3 de xícara de creme de leite fresco, 2 ovos batidos, ½ colher de chá de tomilho fresco, ½ colher de chá de louro em pó e pimenta do reino moída na hora a gosto. Misture tudo e acrescente 2 xícaras de sangue de porco fresco.

Preencha as tripas até 4/5 da capacidade pois as salsichas vão inchar durante o cozimento. Coloque as salsichas fechadas em um cesto de metal sem amontoar. Mergulhe o cesto na água fervendo. Reduza a temperatura para cerca de 95º.C e cozinhe por mais 20 minutos. Para servir, corte a salsicha ao meio e grelhe levemente.

Agradecimentos: Ao primo Beto Lyra, que mandou várias sugestões e aos amigos do Twitter, Daniel Keitini (@Keitini), Alexandre Caliman (@Calimano) e Gustavo Rigueiral (@ChefaPorter), que também contribuíram.

Fontes: Czapp, Katherine. Wise Traditions in Food, Farming and the Healing Arts Magazine, Fall 2006
Davidson, Alan. The Oxford Companion to Food. 2nd ed. UK: Oxford University Press, 2006

2 comentários:

  1. Parabens pelo post!
    todas as partes das séries e filmes de vmapiros foi muito bem escritas e as receitas também.

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  2. Antônio28/1/10

    Eu gostei de ler sobre o sangue, apesar de que, já sabia de suas propriedades. Sou formado em técnico em necrópsia, mas não trabalho. Sou formado em técnico em enfermagem e também não trabalho. Fiz os cursos porque gosto, queria aprender. Agora, estudo para exercer Direito.

    Eu queria o livro de receitas que você vá postar ainda aqui. Ou não sei se já postou. Também gostaria de obter seu contato Ana Franco. Para conversarmos sobre essas receitas em sí e vários caprichos de cozinheiros.

    Satisfação !

    korewpoganski@yahoo.de

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