Cozinha Bossa Nova: Melodia no Prato

Duas semanas de ansiedade, contando os dias pra chegar. Dois jovens talentos da gastronomia cozinhando juntos. Raphael Despirite recebe Rodrigo Oliveira no Marcel para o primeiro jantar do projeto Cozinha Bossa Nova.

Para contar sobre este encontro, me juntei com a Camila (colega de FAAP, amiga querida e blogueira do Gourmet Update or Die, onde eu também colaboro), para unir nossas impressões e expressar o que experimentamos e sentimos no jantar do dia 27 de abril. Sem pretensões (nenhumazinhas) de sermos críticas, ou algo parecido, somente pelo prazer de descrever um daqueles jantares que vão ficar na memória por um bom tempo.

Nossa mesa, além de ser a maior do salão, certamente era uma das mais divertidas: 7 pessoas, 6 mulheres e um único homem, lindo, loiro e de voz macia, bem no meio da típica tagarelice feminina. Uma mesa improvável. Nenhum dos 7 conhecia todos os outros 6, mas todos ali estavam unidos pela paixão gastronômica, loucos pra saber como seria a união da cozinha francesa contemporânea do Raphael com a reinvenção da cozinha de sertão do Rodrigo.

E é feita a esperada pergunta: “podemos começar?”. O sim é quase em uníssono. Contaremos juntas o que foi servido:

Foie gras com uvas geladas e marinadas na cachaça de baunilha


Ana: Chega uma louça linda, parecendo uma cadeira Egg¹, desfilando o foie gras com uvas geladas e marinadas na cachaça de baunilha. A produção costuma fazer parte dos menus degustação do Marcel, mas Raphael confessa que “roubou” a cachaça do Rodrigo, que faz a infusão no Mocotó. O foie gras pra mim é como um beijo. De língua. Aqueles beijos bem bons, que você não quer que acabe nunca. As uvas quase congeladas, com o fundinho de cachaça abaunilhada, arredondando tudo.

Camila: O foie gras combinado com a aquela preparação da uva foi como apresentar um par perfeito, você passa a achar que é assim uma das melhores formas de degustar ambos. E pensando da forma do beijo, para mim foi mais como o primeiro beijo, sabor desconhecido, provado de pouco em pouco, até ficar com vontade de mais.

A: Os contrastes são perfeitos: temperatura, textura, sabores. Fiquei querendo mais e pensando que seria difícil algum outro prato do menu alcançar tamanha harmonia. Estava enganada.

Vieiras frescas com praliné de amendoim e farofa de coco e caju


A: Eu sou louca por vieiras e sempre lembro com saudades do meu tempo na Austrália, onde vieiras são servidas até na pizza. Coisa mais comum do mundo. Bem, aqui elas estavam cobertas por uma telha de mandioca, fina como papel e com sabor nostálgico de mandiopã²! Preciso confessar que amo mandiopã e me encantei com essa versão gourmet. O praliné de amendoim é uma delícia, com sabor torrado bem marcante. Só achei que faltou uma nota de acidez porque as vieiras tão delicadas foram um pouco sobrepujadas por tamanha personalidade do amendoim.

C: Muito saboroso, mesmo, mas sem duvida o sabor do amendoim chamou bastante atenção. Mesmo assim, estava tão bom, que cometi o “pecado” (é pecado?) de raspar o prato com o dedo. Sou contra desperdícios.

A essa altura, todos mais soltos e relaxados, muitos rostos conhecidos a nossa volta e o volume do vozerio um tom mais alto com o vinho cumprindo seu papel social. Algumas confidências feitas baixinho e a alma já preparada pra receber o próximo prato.

Pargo com emulsão do peixe, palmito pupunha e folhas de jambu


C: Meu prato favorito da noite. Foi juntar na boca o pargo com a emulsão delicada (mas marcante) do peixe, com palmito pupunha e folhas de jambu. Senti todos se combinarem perfeitamente, e convenhamos, não é sempre que isso acontece. Simples e maravilhoso assim.

A: Tenho convicção que esse pargo foi capturado em mares celestiais. Não é possível que exista algo tão etéreo neste nosso planeta. Sabe um prato que rouba sua capacidade de expressar emoções? Pois esse pargo me deixou catatônica. E não foi por conta das folhas de jambu que Raphael cultiva com dedicação na pequena horta do restaurante. Ok, jambu é uma experiência mágica por si só, parece carregado de eletricidade, provocando um certo “barato” na boca. Os tomatinhos confitados que guarneciam o prato também me pareceram importantes na composição, super doces e muito frescos. Apostaria que são orgânicos, tamanha a concentração de sabor. Ainda tinha a emulsão do peixe, uma espécie de pil-pil³, tão leve, tão bem feita. Mas o pargo ainda me deixa muda. E olha que pra me deixar muda...

O jantar poderia acabar aqui e já teria sido perfeito.Porém havia outras delícias por vir.

Escondidinho de galinha d'angola e requeijão do norte 


A: O escondidinho chegou numa louça de borda florida, pra avisar que estamos entrando no sertão cheio de poesia do Rodrigo. Quem já foi ao Mocotó sabe que os escondidinhos do Rodrigo parecem soufflés, com suas crostas douradas. Já tentei várias vezes fazer igual, não tenho competência pra tanto. O creme dessa vez era bem denso, por conta do requeijão do norte, o toque de cominho também característico dos escondidinhos do Rodrigo e a galinha d'angola que apresentava uma delicadeza, um “je ne sais quoi”... Casamento perfeito Paris-Pernambuco.

C: Sempre me sinto suspeita ao falar sobre escondidinhos porque sou fã deles. Do buteco ao restaurante mais bacana, para mim o prato é sinônimo de confort food. Sem dúvida um desses eu nunca tinha comido. Pra mim escondidinho é escondidinho, raramente me decepcionam (claro, se todos pudessem ser molhadinhos por dentro que nem este estava e levar também um pouco requeijão do norte, eu ficaria bastante feliz).

Carne de sol com baião-de-dois cremoso e maxixe marinado


A: Apresentação super caprichada, a carne fatiada bem fina, chegou à mesa um pouco fria. Já comi essa carne diversas vezes no Mocotó, todas mais saborosas e suculentas. Pra compensar, um baião-de-dois sensacional, quase um risoto, com o feijão de corda crocante e um bem medido toque de coentro. Divino. O maxixe estava também delicioso, trazendo refrescância e leveza ao prato.

C: Adorei o prato, mas mais porque eu nunca havia comido o maxixe e porque não havia experimentado baião-de-dois tão cremoso quanto este. A carne em si chegou um pouco fria, e descobri que prefiro ela desfiada. Enfim, impressões à parte, o conjunto do prato estava sem dúvida muito gostoso.

Como em todo bom menu degustação francês, temos agora o prato de queijos. O raro, cobiçado e magnífico queijo da Serra da Canastra e o conhecido queijo de coalho tostado.


A: Ficaria só com o primeiro. Queijo de coalho tostado tem que ser comido imediatamente, sob pena de ficar um tantinho borrachudo. Soube que rolou um outro queijinho especial, curado pelo próprio Raphael. Mas este não tivemos a oportunidade de experimentar...

C: Sim, reivindicação declarada. E não posso deixar de citar os vinhos responsáveis pela bela harmonização da noite: Viña Cobos Felino Chardonnay 2008, Old Vines Luccarelli Primitivo Di Manduria 2006 (San Marzano) e Catena Cabernet Sauvignon 2007 (Catena Zapata). O Old Vines eu não posso esquecer de tomar novamente, foi muito apreciado!

Com os olhinhos revirando de tanta felicidade, lá vinha o gran finale: as sobremesas!

Falso fios de ovos


C: Eu não conhecia essa sobremesa mágica. A manga no máximo da sua cremosidade, me lembrou muito o sorbet que comi na Roberta Sudbrack.

A: Manga congelada e ralada no microplane(4). Docinho, refrescante e lindo!

Cartola(5) com sorvete de rapadura


A: Mas que cartola, viu? Podia bem acompanhar um fraque de tão boa que estava! E o sorvete de rapadura já é um clássico do Rodrigo. Pena que não vende em potinhos.

C: Igual eu elegi um melhor prato salgado, esse sem duvida foi o melhor doce, mas o melhor doce que eu comi no ano, isso sim. Um dos melhores sorvetes que já comi na vida, se isso é relevante. Você fica perguntando se não tem mais de onde veio, maravilhoso!

O arremate de um ótimo espresso na companhia de um chocolatinho Valrhona.

Todo esse desfile de delícias escoltado pelo ótimo serviço da casa e pela gentileza inigualável do chef anfitrião, que passou várias vezes na nossa mesa, mostrou a horta e contou um pouco dos planos para seu próximo empreendimento.

E como toda grande experiência gastronômica deve ser, essa estreitou laços e gerou alguns novos, tudo permeado por suspiros provocados por uma refeição arrebatadora.

Sobre os novos encontros, sabemos que acontecerão uma vez por mês, convidados sempre por Raphael. Assim que soubermos do próximo avisamos por aqui, e claro, fica a dica para seguir o @cozinhabossa no Twitter.

Viva a Cozinha Bossa Nova!

Marcel
Rua da Consolação, 3555, Jardins, São Paulo. Tel.: (11)3064.3089.
Mocotó
Av. Nossa Senhora do Loreto, 1100, Vila Medeiros, São Paulo. Tel.: (11)2951.3056

PS – O jantar foi tão bom, mas tão bom que eu, são-paulina fervorosa, fiz o impensado sacrifício de torcer pelo arquirrival “curintia”, time de coração do Rapheal que no dia seguinte enfrentaria o Flamengo pela taça Libertadores (aquela que nós tricolores conquistamos três vezes). O resultado do jogo é conhecido, mas eu não tenho nada a ver com isso... =P

1 – Poltrona desenhada por Arne Jacobsen em 1958 para o hotel Radisson SAS em Copenhagen.

2 – Mandiopã é um salgadinho feito a base de fécula de mandioca, fabricado no Brasil desde 1954. É um alimento rico em amido. As pequenas e duras rodelas esbranquiçadas se transformam em petisco leve e crocante, e deve ser frito antes de consumido. Fez muito sucesso nas décadas de 1980 e 1990, quando as pessoas ainda não tinham se tornado obsessivas em relação à taxa de colesterol no sangue.

3 – Molho típico da culinária basca, feito com o azeite onde o peixe foi cozido (confitado) e batido até emulsionar. O agente emulsificante são as proteínas do peixe.

4 – Marca americana de raladores muito afiados porém mais seguros que os convencionais graças ao cuidado com o formato e material dos cabos.

5 - Tradicional receita nordestina, originada, segundo dizem, de Picuí, no interior da Paraíba. Feita com banana frita na manteiga, coberta com queijo de coalho e canela em pó.

5 comentários:

  1. Mariana Pedrosa6/5/10

    Que delícia de post meninas parabéns!
    Adorei ter feito parte dessa mesa tão inusitadamente feliz!
    E Ana, confesa vai? Não foi incrível poder ser corinthiana por um dia? Nada mais brasileiro...
    Hahaha! Bjo bjo

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  2. Este post me dá uma saudade desse jantar... amei escrever com você, um prazer! Beijos da sua amiga! Cá.

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  3. Anônimo6/5/10

    Pessoal, amei as referencias, mandiopa, chorei..... concordo com o comentario das vieiras, dificil, pra mim, sao boas so com gotinhas de limao e flor de sal.... cartola de fraque, onde voces buscam estas perolas????? esta manga vou copiar, ou como diz Alex Atalla, vou homenagear o chef! tucanearam a cópia.... ninguém falou do Rodrigo. que delicia de chef hein.....

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  4. Anônimo7/5/10

    Ana, que post magnífico. Me deu muitas saudades do nosso jantar.
    Uma noite memorável onde tudo saiu redondinho.
    O foie gras e o pargo foram os campeões da noite, para mim.
    O pargo é meu prato favorito do menu degustação e, foi com felicidade que recebi a informação do Rapha de que ele pensa em colocá-lo no cardápio.
    Concordo com você sobre as vieiras: apesar de deliciosas o amendoim se sobressaiu.
    Repitamos mais vezes, pois poucas coisas são melhores do que comer e beber em boa companhia.
    Beijo,

    Dani.

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  5. Mari, Cá e Dani,

    A cia. de vcs foi fundamental pra deixar a noite ainda mais saborosa. Acho que devemos repetir a dose no próximo Cozinha Bossa Nova!

    Sobre o Rodrigo, bem, a gente não escreve, mas pensa bastante viu?

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